09/06/2013

O MAIOR MILAGRE DA MINHA VIDA!


Esta data será sempre um marco...10 de Junho de 1992..............21 anos passados.

Em Junho de 1992, mais precisamente no feriado do Dia de Portugal, dia 10, nossa família passou uma grande provação. Momentos indescritíveis de sofrimento que nos levaram ao desespero e descontrolo quase total. Passados 20 anos, ainda acho, que eu, nunca sofri o que devia ter sofrido. Nunca encarei este acidente como grave, nem tão pouco que pudesse deixar sequelas. Pensei sempre que jamais poderia acontecer algo à minha filha querida e ponto final. Nunca parei um segundo para pensar no pior, mas não acho normal. Passei até por uma situação bem embaraçosa, mas nem isso mudou o meu foco que foi sempre, desde o primeiro minuto, o de que aquele pesadelo passasse e a nossa vida retornasse ao normal o mais rápido possível. Era este o meu foco. Tudo o que estava a acontecer, nada mais era do que uma provação com um final feliz.
Depois do almoço e após mais uma guerra perdida com Carlota para que comesse o seu bife, saimos os quatro para um passeio em familia. Tinha acabado de adquirir uma máquina fotográfica último modelo da Cannon, caríssima e com apetrechos para captar fotos de excelente qualidade. Sendo assim, estava decidido passearmos e tirar fotos para revelar depois em slides também. Não sabiamos qual o destino, mas logo a poucos kms da cidade, decidimos parar na barragem de Bagaúste. A 7km de casa e uma construção relativamente recente, mais precisamente de 1973, foi o local eleito para fazer umas fotos com o cenário do rio Douro. Estava um dia ainda primaveril com céu nublado, mas morno. Leo era o fotógrafo de serviço e as suas mulheres, as suas modelos.

Tinhamos ido a um casamento no fim de semana anterior e as miúdas usaram os vestidos dessa festa para fazermos as fotos. Carlota era uma criança que se destacava pelos seus cabelos longos e muito naturalmente encaracolados cor da palha da espiga de milho. Irrequita e quase elétrica, eram necessários todos os olhos disponíveis em cima dela todo o tempo. Ela ia completar 7 anos em Agosto e a irmã, Sofia, no mesmo mês, completaria 11.
O lugar onde estacionamos o carro, era um miradouro. Ficava na beira da estrada a uns 8 metros de altura do ancoradouro para os barcos de turismo. Ao lado do estacionamento havia uma larga entrada para autocarros, fechada por uma longa e grossa corrente de ferro com cadeado. Qualquer pessoa passava bem, mas completamente interdito a automóveis. O piso era todo em pedra e cimento. Nada de ervas ou terra. Não havia ninguém por perto, apenas alguns carros passavam de vez em quando. O miradouro estava cercado de um pequeno muro de uns 70 cm de altura e aberto dividido por colunas de pedra. Era ideal para nos sentarmos e apreciarmos a paisagem magnífica do rio. Contudo, olhando para o lado do rio através do muro, era uma altura de 8m que assustava. Sendo Carlota de pouca confiança em termos de traquinices, eu e ela sentadas e com ela bem agarrada a mim pela sua cintura, inclinei-a para lhe mostrar o perigo e a altura em que estávamos. Ela viu e entendeu, afastando-se para longe dali.
Enquanto ela se afastava para longe do perigo e em direcção à irmã, Leo chamou-me a perguntar como se substituía o rolo na nova máquina. Levantei-me e virei-me para ele, que estava do outro lado, à beira da estrada e nem tive tempo de responder. Ouvi gritos e estava instalada a desgraça! Só me lembro de ouvir a voz de Carlota a desaparecer e a chamar por mim...mamãaaaaaaaa......
Estava a ter um pesadelo. Não era possível que a minha filha tivesse desaparecido. Não era possível que ela tivesse ido em fracção de segundos saltar do muro ou espreitar...sei lá! Não era possível porque eu estava bem junto do muro, bem junto delas e do perigo. Como tinha acontecido aquilo?
O pai desatou a correr através da entrada com a corrente que dava para baixo para o lugar onde carlota tinha caído. Sofia ficou estática e completamente calada e imobilizada. Eu gritava e gritava agarrada a um poste de luz da estrada. Gritava tanto que rompi duas cordas vocais, lesão da qual nunca mais me recompus. Passada uma eternidade, apareceu Leo com Carlota nos braços e ajoelhou-se depois de sair da corrente que fechava a entrada, aos gritos dilacerantes.
O nosso carro bem ao meu lado, estava com todos os vidros abertos e as portas destrancadas. Tentei abrir o puxador da porta do condutor, mas por mais tentativas que fizesse não o consegui. Eu não conseguia entender porque não abria a porta. Uma coisa tão fácil e não fui capaz. Então, passei do carro para o meio da estrada.

Gritava tanto que os carros que passavam se afastavam de mim e não paravam. Alguns paravam bem longe a ver se entendiam o que se passava, mas seguiam.

Não sei quanto tempo passou, mas felizmente, um carro parou de imediato com dois jovens e atuaram logo tirando Carlota dos braços de Leo e depois de me terem metido a mim e a Margarida no banco de trás, deitaram Carlota no meu colo com as pernas no colo da irmã. Leo ficou ali de joelhos aos gritos sem se mexer quando nós saímos em marcha levadas pelos jovens.

A partir do momento em que Carlota veio para o meu colo, acalmei mais um pouco e tive o discernimento para lhe sentir o pulso e respiração. Ela não tinha nem pulso nem respiração. A minha reação foi dar-lhe um estalo na face e gritar a Sofia para lhe bater nas pernas e chamar por ela pelo seu nome. Sofia obedeceu de imediato, e com o estalo e muito chamarmos ambas por ela, Carlota retomou a respiração, como se tivesse sido interrompida por uns minutos ou segundos, sei lá. O tempo aqui neste cenário de pesadelo nunca contou nem nunca tive uma ideia se foram segundos, minutos ou horas.

O que eu sei descrever bem é que depois de Carlota retomar a sua respiração, meu coração acalmou completamente. Nunca mais dei um grito ou fiquei desesperada como até aquele momento. Tudo mudou para mim. Tinha a certeza de que o perigo já tinha passado e que tudo ia ficar bem. Coração de mãe.
Chegados ao hospital da Régua, toda a gente nos conhecia e foi um atendimento nas urgências com todas as atenções e mais algumas. Eu e Sofia fomos afastadas da sala de urgências. Sofia chorava baixinho agarrada ao sapato rosa de camurça da irmã. Eu não conseguia ficar quieta e andava a tentar interpretar as expressões dos enfermeiros e médicos que rodeavam Carlota. Só aí é que consegui ver que a minha filha não tinha um arranhão. Não tinha perdido uma gota de sangue. Então porque estava sem falar? Não conseguia entender nada e aos poucos fui vendo que lhe estavam a pôr uma tala de madeira na sua coxa esquerda. Perguntei o que estavam a fazer e responderam-me que era uma maneira rápida de a despacharem para o hospital do Porto, pois ela tinha um traumatismo craniano grave. Tinha que ir de imediato para o Porto. Não havia tempo para a engessar, pois havia fracturado o fémur também, mas que isso não era grave.
Passado algum tempo, não faço ideia o quanto, chegou Leo com um amigo. Ele sem saber como, conseguiu conduzir o carro até á cidade e parar na estrada à beira da esplanada do café do nosso prédio, sair do carro e gritar que o ajudassem porque a filha tinha tido um acidente, tinha ido para o hospital e ele não conseguia levar o carro mais. Foi aí que um amigo nosso entrou logo no carro e o levou até ao hospital. Seguiram-no logo mais amigos e conhecidos que foram ver se podiam ajudar em alguma coisa.

Em suma, atrás de Leo chegaram imensos amigos que iam sabendo do ocorrido. Chegaram médicos e colegas de Leonardo. Todos foram incansáveis durante todo este pesadelo.
Sofia foi entregue a um casal nosso amigo que a foi levar à guarda dos meus pais. Sempre agarrada ao sapato da irmã, despedi-me dela e garanti-lhe que ficasse tranquila que tudo ia correr bem com Carlota. Eu Leo e o nosso amigo, seguimos atrás da ambulância que seguia com uma equipe de enfermeiros e Carlota lá dentro.

Ambos sentados no banco de trás, e nosso amigo conduzindo o nosso carro sozinho à frente, fizemos uma viagem em total sobressalto e gritos de Leonardo. Eu ia mais calma e tentava deitar a cabeça de Leo no meu colo, pois ele ficava pior de cada vez que olhava a ambulância e via movimento através das janelas das portas de trás. Foram duas horas de inferno indescritível.

Apenas me lembro de o tentar acalmar e dizer sempre que tivesse calma que tudo ia correr bem. Eu só dizia isso – tudo vai correr bem! Tenho a certeza que foi a maneira que o meu subconsciente encontrou para me acalmar e eu assim poder acalmar todos à minha volta.
Chegados ao hospital do Porto, só podia entrar um de nós com Carlota nas urgências. Como a pessoa que entrasse com ela tinha que se acalmar e não podia gritar, pedi a Leo para ir ele e eu fiquei fora.

Não sei bem porque decidi assim naquele momento, se foi para ele se acalmar um pouco, ou se foi porque eu tinha uma tarefa em mente que tinha que pôr urgentemente em prática. Sei que, mal eles entraram para dentro das urgências, eu saí para a rua. Corri à procura de um telefone e encontrei uma cabine telefónica mesmo em frente ao hospital. Fui a um café ao lado e destroquei notas em moedas e peguei na minha agenda e comecei a ligar para todos os telefones que tinha anotados de A a Z.

Quando acabavam as moedas, ia trocar mais e assim fiz até esgotar todos os nomes sem excepção. Quando demoravam muito a atender, desligava e passava ao nome e número seguintes.

Quando alguém atendia, eu nem sabia com quem falava, apenas dizia: - Sou a Vitoria, a minha filha Carlota teve um acidente e está muito mal no hospital de S. António no Porto. Preciso de ajuda, por favor, obrigada. – desligava e passava para outro. Não me lembro de ter falado com alguém especificamente. Foi uma reação absolutamente automatizada da minha parte.
Depois de todos os telefonemas, fui novamente para o hospital e aguardei que Leo chegasse e me dissesse alguma coisa, o que aconteceu quase logo. Ele veio acompanhado de um médico que nos informou da evolução dos acontecimentos, desde que os tinha lá deixado. Carlota tinha um traumatismo craniano e o fémur esquerdo fracturado. Iria fazer exames e mais exames e depois nos diriam mais alguma coisa. O seu estado era grave, mas teríamos que aguardar os resultados dos exames que faltavam.
Foram horas e horas de desespero por parte de Leonardo. Não havia quem o acalmasse. À medida que as horas passavam, apareciam pessoas dentro e fora do hospital à nossa procura, mais precisamente dos pais da menina Carlota da Régua. Vários médicos de especialidades que nada tinham a ver com os cuidados de Carlota e que estavam em serviço dentro daquele hospital, vieram ter comigo dizendo que foi o Sr. tal ou Dr. tal ou Sra tal etc... que lhes telefonaram a pedir para nos procurar. Tentavam acalmar-nos e diziam que estariam por perto a vigiar Carlota e seu estado.
A equipe que estava a tratar de Carlota não sabia como é que em tão pouco tempo o acidente da menina da Régua tinha causado tanto rebuliço dentro do hospital. Até o diretor do hospital passou a ver o estado da menina e que, sendo um dia de feriado nacional, era muito mais estranho.
Foi aí que tive consciência do que eu própria tinha feito. Na minha agenda, eu tinha os telefones de imensos médicos e advogados amigos e não só. Estavam lá os números dos nossos médicos pessoais. É claro que uns transmitiram aos outros e os que estavam longe, pediram a conhecidos e amigos que viviam no Porto para lá passarem e ajudar no que pudessem. Foi este o resultado dos telefonemas da minha agenda.
À noite, apareceram alguns casais amigos que foram de Vila Real e da Régua ter connosco para nos apoiarem e saberem pessoalmente do que precisávamos. Foi uma mobilização total de amigos e, até de apenas conhecidos, que nos cercaram de carinho e amor. Jamais esquecerei esses momentos de amizade e fraternidade de todos eles.
Já noite, fui chamada para junto da minha filha que estava em coma. De vez em quando eu levava Leo até ela e ele, porque sabia que não podia fazer barulho, ficava calmo durante o tempo que estava com ela. Não podíamos fazer nada senão aguardar a ver o que as próximas horas nos reservavam. O seu diagnóstico era reservado.

Um de nós podia estar sempre com ela. Era eu quem ficava com ela mais tempo. Ela não estava ligada a máquina alguma, nem metia impressão porque não tinha ferimento algum. Mas aí, eu vi que por trás da sua orelhinha esquerda, estava tudo negro de pisado. O seu mal estava aí. Eu passava a maior parte do tempo com ela, sempre atenta ao que médicos e enfermeiros diziam ou faziam.
Fora da entrada da urgência pediátrica, havia um grande átrio cercado por uma varanda de ferro que dava para a rua. Nesse local não entravam carros ou ambulâncias, era mesmo só para familiares de crianças que entravam na urgência. Leonardo estava aí com um casal nosso amigo que vivia no Porto e que pelos telefonemas da agenda souberam do acidente e vieram ter connosco de imediato. Ela já tinha dado dois valium de 5mg a Leo e nem assim ele se acalmava. De vez em quando eu vinha cá fora ter com eles e ver como estava Leo.
Tal como já disse, eu fiquei calma desde que ouvi Carlota respirar e nunca mais gritei ou me desesperei.

Leo estava incontrolável. Chegava a dizer que se a filha morresse ele se matava logo também. Que não viveria nem mais um minuto, enfim, coisas que os pais desesperados nem pensam e só deitam da boca para fora. Eu só o acalmava e dizia sempre que tudo ia correr bem.

A diferença entre nós os dois era tal que uma senhora que estava fora no átrio, uma das vezes que eu vim de dentro, se acercou de mim e disse:
-Ai coitado deste pai, tenho tanta pena dele! Ele não se cala, está desesperado. Até pede para morrer! Eu só penso numa coisa, se ele está assim, imagino como estará a mãe da menina! Que Deus os proteja e os ajude com tamanha dor e sofrimento.

Eu olhei a senhora e não fui capaz de responder nada. Fiquei assim parada a olhar para ela sem saber o que pensar ou dizer. Estava a processar o comentário dela e não fui capaz de articular palavra ou até mesmo um gesto. Nada! Ela olhou-me e continuou:
- A senhora não acha? Já viu como ele está? Olhe bem para ele coitado! Ai que pena me dá!
A sorte é que a chamaram de dentro da urgência e ela foi embora e nunca mais a vi. Como era um local de entra e sai constante, nunca mais a vi das outras vezes que saí fora ou entrei dentro. Fiquei de tal forma pensativa no que ela tinha dito que até cheguei a pôr em dúvida se aquilo se tinha passado, ou era o meu subconsciente a meter-se comigo por eu não reagir da mesma forma que Leonardo. Acabei por perguntar à minha amiga mais tarde se tinha visto a senhora que antes estava a falar comigo. Isto só para ter a certeza que não era apenas fruto da minha imaginação. Ela disse-me que não a tinha visto mais e perguntou-me o que ela me tinha dito. Aí tive a certeza de que não estava a ficar maluca.

Afinal havia reações minhas que eu não conseguia entender, muito menos explicar.

Era verdade, Leo estava completamente destroçado e nada o acalmava. Todos os seus compromissos foram adiados ou cancelados e o mundo parou para nós.
Entretanto, eu andava sempre em cima dos acontecimentos, quer dentro com médicos e enfermeiros, quer fora a acalmar Leonardo. Durante a noite, apercebi-me que a perna da Carlota estava inchada e de cor escura. O sangue não devia estar a circular bem. Como eu andava sempre a tentar ouvir as conversas sobre a minha filha sem ser notada, mal ouvi o nome Régua, aprumei o meu sentido auditivo ainda mais. Dois enfermeiros passavam por mim e eu muito discretamente segui-os ouvindo o que diziam:
- A miúda da Régua já foi engessada, mas está tão mal que não deve passar de hoje coitadinha.

Esta frase deu-me a resposta que eu precisava para ter a certeza de que a perninha de Carlota estava mal engessada. O trabalho foi feito de qualquer maneira porque não tinham esperança que ela sobrevivesse. Como podiam pensar isso da minha filha? Como se atreviam a dar palpites? Como era possível estar a acontecer uma coisa destas?
Na minha cabeça, não ficou qualquer dúvida de que todos eles estavam enganados e que tinha que agir rápido. Subi ao 4º andar onde ficavam os serviços de ortopedia e pedi para falar com o médico responsável pelo sector. Quem me atendeu, deve ter reparado que eu estava exaltada e com cara de poucos amigos, pois desapareceu da minha vista e rapidamente o ortopedista se acercou de mim e me perguntou o que eu precisava. Eu olhei-o bem nos olhos e disse:

- Sr. Dr., sou a mãe da menina da Régua que teve um acidente na barragem. Ela veio há pouco aqui engessar a perna esquerda. Fracturou o fémur e está em coma com um traumatismo craniano. Sabe de quem estou a falar?

- Sei sim. Não fui eu quem a engessou, mas fui quem a diagnosticou. O que se passa minha senhora?

- O que se passa é que a minha filha está mal engessada. Tem a perna inchada com uma cor escura. O sangue não circula. Eu não sou burra e dei logo conta de que algo estava mal, mas tive a certeza com a conversa que ouvi a uns enfermeiros que passaram por mim. Eles iam a dizer que ela não passava de hoje. Isso não é verdade, ela vai viver sim e ficar bem e quero que a engessem como deve ser. Entendeu Sr.Dr.?
O homem estava a olhar para mim tão fixamente que nem pestanejou. Não sei o que lhe estava a passar pela cabeça, mas tive a certeza de que me prestou toda a atenção que eu queria e precisava. Dessa forma, eu não precisei repetir nada ou ser mal educada. Estava completamente irritada e revoltada e estava disposta a fazer tudo para que mudassem de opinião em relação ao estado da minha filha e, principalmente que a tratassem como uma doente em evolução positiva e não uma moribunda! Enquanto me desloquei da urgência pediátrica que ficava no rés do chão até ao 4º piso, tudo me passou pela cabeça para fazer valer os meus intentos de tratarem a minha filha como uma criança que acordaria dali a pouco sã e completamente normal. Esta era a minha certeza!
- Minha senhora, como se chama? – perguntou finalmente o ortopedista.
- Vitoria. Meu nome é Vitoria.- Deve ter havido algum mal entendido, tenho a certeza, mas vou já mandar trazer a sua filha e ver o que se passa.
- Pois pode manda-la vir já, que eu vou esperar aqui mesmo, não vou sair daqui.
- Não. A senhora tem que esperar lá fora na sala de espera.
- Sr. Dr. Eu não arredarei pé daqui até ver entrar a minha filha. Será o mínimo para compensar o que me estão a fazer passar. Além disso, o pai está lá fora e nem sonha do que se está a passar. Posso ir lá busca-lo e seremos dois a fazer barulho. Onde já se viu tratarem os doentes desta maneira? Isto vai ter que ser denunciado!

Mais uma vez, o médico olhava-me sem saber o que dizer. Deve ter percebido que mais valia acalmar-me do que me contrariar. Mandou-me sentar numa cadeira que estava a meu lado e chamou um enfermeiro. Deu-lhe as ordens à minha frente:
- Xavier, vai buscar a menina do acidente da barragem na Régua. Vai rápido que eu vou ligar a dar a ordem.

O enfermeiro assentiu com a cabeça e desapareceu pelo corredor. O médico olhou-me de novo e disse:
- Vitoria, acalme-se que tudo vai correr bem. Vou examinar a sua filha e ver o que se passa com o gesso. Pode ser apenas um mal entendido. De qualquer maneira, pode ter a certeza de que vou ser eu mesmo a tratar dela. Qualquer coisa que precise me chame por favor, com licença. E saiu apressado entrando na sala em frente a mim e fechou a porta.
Passados uns minutos que achei breves, vi a sair do elevador a maca com a minha filha e dirigida pelo enfermeiro Xavier. Levantei-me e segui-os pela porta onde tinha entrado o médico anteriormente. Era uma sala de materiais ortopédicos. Dali podia ver uma outra sala que era a de cirurgia. O médico veio examinar Carlota e deu ordem imediata para cortarem o gesso todo. Olhou-me e nem foi preciso falar. Eu percebi que estava certa e que as minhas suspeitas faziam todo o sentido. Depois de ver e ouvir a ruidosa máquina de cortar o gesso e, aflita que tocasse na pele de Carlota, sentia-me muito mais calma. Iam finalmente engessar a perna como devia ser! Saí sem ser preciso alguém me dizer nada e fiquei no corredor à espera. Quando terminaram, o médico chamou-me e levou-me a um pequeno gabinete que devia ser o seu consultório. Indicou-me a cadeira para me sentar e ele instalou-se em frente a mim com a secretária a separar-nos.
Aclarou as cordas vocais e começou a falar, olhando e mexendo em papeis que estavam pousados em frente a ele. Eu sabia que ele estava comprometido e sem razão. Só queria ver como ele iria “descalçar a bota”, se de maneira correta, ou esquivando-se das suas responsabilidades.
- Vitoria, em primeiro lugar quero pedir desculpa por tudo isto. Como sabe, este episodio jamais deveria ter acontecido. Contudo, ainda lhe queria pedir que deixasse as coisas por aqui. A responsabilidade não é inteiramente minha, mas a partir do momento em que a vi aparecer aqui á minha frente e a ouvi, passei a tomar as rédeas deste processo como de uma filha minha se tratasse e também tenho filhos. Mal a vi, entendi perfeitamente a sua posição e o seu desespero. O comportamento dos enfermeiros a quem você ouviu a conversa é completamente antiético e antiprofissional. Temos duas opções para tratar desse caso: uma é identifica-los e fazer uma queixa; a outra é esquecer o assunto. É seu direito escolher o que quer fazer. Terá o meu apoio no que precisar.

Eu não abri a boca e olhava-o muito diretamente nos olhos. Ele também me olhava, principalmente quando me disse que me apoiaria. Eu não disse nada e ele entendeu que eu ainda não estaria satisfeita com as suas desculpas e explicações, por isso continuou:
- Até porque tenho essa obrigação. No fundo, Vitoria, e sem querer que interprete isso como desculpa porque não há desculpas possíveis, se não fosse a sua astúcia e desenvoltura provocadas pelo erro ético dos enfermeiros, não teríamos corrigido tão rapidamente o erro no engessamento da perna da sua filha. Por isso, pense bem no que quer fazer e eu me comprometo a ajuda-la em tudo o que precisar. Todos errámos, mas sinto-me o maior responsável. Mais uma vez peço desculpa a uma mãe que admiro demais pela sua valentia.

Respirei fundo, olhei o seu nome escrito na bata e disse:
- Dr. Oliveira Matos, não me vou alongar nem dizer muito sobre o que se passou. Tenho a certeza de que o Sr. percebeu bem todos os erros cometidos e que fará a partir de hoje um melhor trabalho para evitar que se repitam. A minha filha já está devidamente engessada e era tudo o que eu queria. Agradeço a sua atenção e o seu cuidado. Só isso sr. Dr. obrigada.

Saí do consultório e no corredor, o enfermeiro estava à minha espera com a Carlota na maca. Seguimos todos para o elevador e para o ponto de partida.

Leonardo andava à nossa procura e sem saber bem o que tinha acontecido. Não lhe contei nada, apenas lhe disse que o gesso não tinha ficado bem da primeira vez e que foi substituído.
Assim passei a primeira noite no hospital. Carlota não se mexia. Eu olhava-a e falava com ela baixinho, agarrando-me a ela e beijando-a. Nunca chorava nem me lamentava. Pedia-lhe que acordasse e não me fizesse ficar triste por mais tempo. Chamava sempre pelo seu nome e falava-lhe da irmã e do pai. Quase sempre lhe falava ao ouvido muito baixinho.

Foi um segundo dia a correr para a porta e para o telefone da pediatria que ficava no corredor. Ligaram-me dezenas de pessoas a saber o estado de Carlota. Algumas choravam e eu pedia que não o fizessem, dizendo sempre a mesma coisa: -Tudo vai correr bem, Carlota vai ficar boa e isto não vai passar de um susto!

Lá fora junto de Leo e do casal nosso amigo, que nunca mais arredou pé de junto dele, havia sempre gente amiga ou apenas conhecida que apareciam com a sua solidariedade e apoio. Todos diziam que tinham ficado a saber por um telefonema que eu tinha feito.
Enfim, as horas passavam e tudo estava igual. Leo foi levado muito contrariado a casa dos nossos amigos para tomar um banho e mudar de roupa. Eu, devia ter um aspecto tão mau que uma enfermeira me disse o seguinte:
- D. Vitoria, porque não vai aqui em frente a uma cabeleireira dar uma jeito no cabelo e pôr uma pintura no rosto? Sabe, a Carlota pode acordar a qualquer momento e de certeza que quer ver a mãe com um aspecto mais luminoso e não o de tão grande sofrimento como está bem estampado no seu rosto. Vá lá, a gente toma conta dela.

Eu fiquei apreensiva, mas dei-lhe toda a razão e perguntei apontando para Carlota:
- Posso lavar o cabelo dela?
- Claro que sim. Não temos shampoo aqui, mas se o trouxer, pode lavar à vontade o cabelinho da menina.

Decidi ir ao cabeleireiro e trazer tudo para lavar o cabelo de Carlota. Contei a história toda à cabeleireira que se emocionou e depois de bem penteada e um pouco maquiada, regressei ao hospital e as enfermeiras aplaudiram o novo look numa exclamação em uníssono! – Que linda!
Com a ajuda de uma enfermeira, lavei o cabelo bem lavado a Carlota numa bacia em cima da cama. Enchi-o de amaciador e penteei-o muito bem. Depois de passado por água, enxuguei-o bem em várias toalhas e ia penteando sempre até ficar seco. Assim ia passando o meu tempo, falando com ela e penteando-a.

Quando passaram mais de 24 horas, mudaram-nos para a enfermaria pediátrica. O diagnóstico não mudara nada, continuava reservado, mas o pior já tinha passado segundo a própria médica neurocirugiã. Restava aguardar pela evolução dos acontecimentos. Ninguém sabia como Carlota acordaria. É claro que mais tarde eu pensei em tudo isto e percebi os riscos de deficiência que ela correu com o traumatismo, mas naqueles dias, confesso que não deixava entrar nada que fosse pensamento menos positivo. Estava fora de qualquer hipótese para mim, por mínima que fosse, a minha filha acordar com alguma deficiência!
Depois de termos sido mudadas para a enfermaria, eu tinha uma sensação muito estranha de que sabia como acordar Carlota daquele malvado coma. Era uma intuição muito forte e que não largava um segundo o meu pensamento.

Carlota era muito chegada a um primo bebé que tinha pouco mais que 2 anos. Ele era louco com ela e Carlota não passava sem o ver todos os dias. Filho da minha irmã do meio Sara. Eu tinha a certeza de que se levasse Zé Pedro junto de Carlota e ele a chamasse, ela acordaria! Isso não me saía da cabeça.
Era proibida a entrada a crianças no hospital. Além disso, Zé Pedro vivia a 100km de distância e tudo se complicava ainda mais. A minha família ligava a toda a hora a saber da evolução dos acontecimentos, ansiosos por irem ter conosco ao hospital e poderem ver Carlota. A minha resposta era sempre a mesma. Não adianta virem porque ela está na mesma e não vos deixam entrar. Aguardem que em breve ela vai acordar e tudo vai ficar bem. Isto dizia à minha mãe, mas à minha irmã eu sempre falei da minha aguçada intuição. Ela só me dizia:
- Arranja maneira de o meteres aí dentro e nós vamos a qualquer hora. Caramba, até me admira Vitoria, tu és tão despachada e consegues tudo, não me digas que não vais engendrar um plano para levarmos o Zé Pedro junto dela.
- Pensas que é fácil! Só se o metermos num saco e o escondermos pelos elevadores e corredores e na entrada...estás louca? Não sei, ainda vou ver se arranjo solução.- Respondi eu com a minha imaginação sempre a funcionar a mil.
Entretanto, continuava a falar com a Carlota e de vez em quando ela mexia os dedos dos pés e as pestanas. Parecia que as ia abrir a qualquer momento. Eu chamava-a e pedia-lhe que regressasse. Dizia-lhe que estava a morrer de saudades dela, que ela tinha que acordar, enfim coisas que já não me lembro mais. Só sei que nunca estava calada. A sensação de que ela estava prestes a acordar era uma certeza para mim. Daí o meu desespero aumentar e me tornar cada vez mais chata com as enfermeiras insistindo na permissão da visita de Zé Pedro.

Falava com as enfermeiras e dava-lhes conta da minha preocupação e da certeza do que me ditava a minha intuição. Claro está que elas me ouviam sim, mas não autorizavam a visita do bebé. Essa sexta feira, foi passada num sobressalto com a ideia fixada apenas e só a tentar engendrar um plano para trazer Zé Pedro até Carlota. À noite, foi-nos anunciada uma noticia, no mínimo curiosa:
- Amanhã, sábado é dia de S. António. Dia 13 de Junho. Como é o padroeiro deste hospital, a entrada é livre das 9h da manhã até às 6h da tarde. Vai ser um dia muito cansativo, barulhento e de muita confusão. Pedimos a todas vocês que tentem controlar as vossas visitas, de forma a não incomodarem os doentes do vosso lado.

O quê que era que eu estava a ouvir? Como era? Antes que eu abrisse a boca a perguntar se podia trazer o bebé, a enfermeira virou-se para mim e disse:
- Vitoria chegou a sua hora. Amanhã já traz o seu sobrinho e já o põe a falar à sua filhota. Que Deus a ajude e resulte! Bom, boa noite a todas. – e saíu.
Eu estava paralisada. Não conseguia mover-me ou falar. Uma das mães que estava ao meu lado, disse-me mais tarde, que eu parecia hipnotizada. Ela chamou-me duas vezes e eu não dava sinal de estar neste planeta! Passados alguns minutos, desatei a correr e fui telefonar à minha irmã a dizer-lhe que estivessem antes das 9h da manhã na entrada do hospital e expliquei o porquê. Ela ficou radiante e pediu-me para vir à porta principal buscá-los para ser mais rápido. Não dormi mais uma noite. Só queria que fossem 8h da manhã para eu me preparar para o grande evento das nossas vidas. Como seria ver e ouvir a Carlota a falar comigo de novo? O que iria ela perguntar-me? Será que ela se lembraria de alguma coisa? Ai meu Deus, quanta excitação! Nossa Senhora de Fátima estava a tomar conta de tudo e saberia com certeza o que fazer.
Cresci no seio de uma família devota a esta Santa. Sempre recorri a ela nos bons e nos maus momentos. Sempre agradeci tudo o que tive na vida de bom e menos bom. Antes de pedir fosse o fosse, sempre agradeci o que já tinha tido. Sou católica não muito praticante, mas muito crente e com muita fé. Não sou daquelas pessoas que se lembram da Virgem apenas e só quando há tempestades. Acima de tudo, sempre tive o bom costume de adormecer a rezar e agradecer o dia que tive, independentemente de ter sido bom ou não. Por tudo isto, desde o momento em que Carlota desapareceu da minha vista naquela tarde fatídica, eu só chamei pela Nª Srª de Fátima. Gritei por ela durante todos aqueles minutos de inferno até nos socorrerem. Restava-me contar com a Sua grande participação e mais um dos seus milagres.
Pedi a Leonardo que ficasse na porta da entrada do hospital a receber as nossas visitas que já sabíamos que iriam ser muitas. Ele tinha que ficar e ir levando pequenos grupos à medida que fossem saindo os que já tinham entrado. Pedi-lhe que não deixasse subir ninguém até que eu dissesse alguma coisa por causa daquela minha ideia fixa de Zé Pedro.
Quando cheguei à porta do hospital, lá estava toda a minha família, sem excepção. Eu estava tão ansiosa, que tirei Zé Pedro do colo do meu cunhado Paulo e desatei a correr por aqueles corredores na frente de todos eles. Pelo caminho ia falando com ele e explicando que ia ver a Carlota, que ela estava deitada na cama a dormir e que era preciso acordá-la. Ele olhava-me um pouco assustado, mas não chorava e dizia a tudo que sim.

Quando chegamos à cama de Carlota, sentei-o ao lado dela e pedi-lhe:
- Zé, tens que chamar muitas vezes a Carlota até ela acordar. Ela está muito preguiçosa e só quer dormir. Vamos acordá-la? Se fores tu a chamar, ela acorda. – ele olhava-a e não se mexia nem falava.

Entretanto, o resto da família chegou ao quarto, mas a maioria ficou da parte de fora, assistindo pela grande janela de vidro que dava para a cama onde se encontrava Carlota . O quarto tinha 3 camas e a nossa era a primeira junto à porta e à parede que era metade em vidro.
As enfermeiras vieram todas para o nosso quarto e as outras duas camas apenas tinham uma criança e respectiva mãe cada uma. Era um silêncio absoluto e todos os olhos postos em Zé Pedro e Carlota. A maioria da minha família chorava sem fazer barulho algum. No quarto estávamos 10 pessoas. Na porta e na janela a ver-nos estava o resto que eram mais umas 10.

Carlota estava muito pálida, mas com os seus cabelinhos bem brilhantes e sedosos e muito cheirosa. Ela estava engessada desde o peito até ao fundo das costas e à ponta do pé esquerdo e até ao joelho da perna direita . O gesso tinha sido posto apenas na parte das pernas, deixando a parte do ventre e do rabito libertas. Na parte da barriga, tinha uma tábua metida dentro do gesso que era por aí que pegávamos nela para a lavar e transportar. Estava coberta com o lençol e Zé Pedro não via gesso nenhum, mas percebeu que alguma coisa estava escondida, pois Carlota era muito magra e havia muito volume dentro dos lençóis. Eu estava a ver a confusão na cabeça dele à medida que ele ia olhando e deitava a mão a apalpar o lençol. Quase ia começar a chorar e eu antes que isso acontecesse, desviei-lhe a atenção fazendo-o olhar para mim e dizendo-lhe:
- Zé chama a Carlota. Ela quer acordar e brincar contigo meu amor. Vá lá, chama-a. Vamos chamá-la os dois, vamos? – ele sorriu e finalmente começou a chamar pelo seu nome. Primeiro eu ainda ajudei, mas depois deixei-o só a ele. Ele começou a chamar e mexeu nos cabelos dela. Eu só insistia que ele não parasse de a chamar, até lhe disse que ela estava a brincar com ele e ia acordar se ele a chamasse muitas vezes.

Depois de uns cinco ou dez minutos nesta insistência, Carlota mexeu-se e abriu pela primeira vez os olhos. Como toda a gente estava com os olhos bem pregados nela, a emoção despoletou de imediato e o choro foi geral. Eu ainda pedia silêncio e os que não se aguentaram, tiveram que sair para mais longe. O resto ficou e assistiu à evolução do tão esperado milagre. Carlota foi abrindo os olhos e mexendo os braços. Deitou a mão ao Zé Pedro e riu-se para ele. Quando ouvi a palavra Zé e mamã, levantei-me e desatei a correr pelos corredores longos e de pedra, até chegar junto de Leo à porta da entrada do hospital onde o tinha deixado. Mal o vi ao longe entre dezenas de cabeças, chamei-o aos gritos:
- Leo, Leo Carlota acordou! Carlota está bem!

Toda a gente me olhava e alguns devem ter pensado que eu estava maluca, mas isso não me importava nada. Mandei subir Leonardo e ver Carlota e eu fiquei na porta a segurar os nossos amigos, que naquela altura já eram mais de uma dezena. Com aquela noticia, todos partilharam a minha felicidade e choravam sem parar. Eu ainda me lembro de ter dito:
- Não chorem! Porquê chorar? Temos é que celebrar! Rezar mais ainda a agradecer este milagre! Eu sabia que tudo ia correr bem, eu sabia. Obrigada minha Nossa Senhora de Fátima!
Depois desta explosão de alegrias e agradecimentos, dei-me conta de que mal tinha visto Carlota a voltar ao normal. Pedi a uma amiga do grupo que me substituísse, pois eu tinha que voltar lá em cima e começar a mandar embora algumas pessoas para eles irem subindo. A maioria dos que ali estavam disseram que, visto as boas novas e o despertar de carlota reconhecendo já as pessoas, não nos iam incomodar e iam embora, pois já estavam felizes com a nossa felicidade! O que importava era isso mesmo, ela acordar e estar tudo a correr bem. Iam embora e já levavam a boa nova para a nossa cidade, descansando o povo que tanto rezou por ela e por todos nós. Foi nessa altura que eu soube que até as igrejas encheram com missas rezadas em nome de Carlota. Meu Deus, com essa força e solidariedade de todos, chorei eu! Na escola de Carlota juntaram-se todos os alunos e professores e foram para a igreja rezar por ela juntamente com o padre da freguesia.
Quando cheguei novamente ao quarto, já Carlota chamava pelo nome de cada um dos seus visitantes. Leonardo e Zé Pedro estavam bem juntos dela. Quando ela me viu, chamou logo mamã e riu-se para mim!

Como poderei expressar por palavras a mistura de sentimentos que sentia naquele momento? Não é fácil.

Se por um lado eu sempre tive a certeza de que este momento chegaria e que tudo acabaria bem, por outro, sentia-me confusa e perdida. Estava focada no despertar de Carlota do coma, mas a minha mente não parava de pensar em mil e uma coisas. Era uma miscelânea de emoções que eu sempre interrompia para me focar apenas neste momento. O momento em que Carlota abriria os olhos e começaria a falar comigo.
Ela não parou mais de falar e fazer perguntas. Graças a Deus, aos Anjos e Santos ela estava perfeitamente normal. Apenas a sua voz estava totalmente diferente. Muito fina e irreconhecível. Normal de quem está uns dias sem a usar, ou fica em coma, como era o caso.

Aos poucos, as visitas foram saindo e Leonardo também foi embora obrigatoriamente. Só eu e as outras três mães ficámos com os nossos filhos. Quando já estávamos sós, fui visitada por muita gente de dentro do hospital, tanto enfermeiros como acompanhantes de outras crianças hospitalizadas. As enfermeiras que cuidavam do nosso quarto vieram falar comigo cheias de remorsos, diziam elas, porque se tivessem percebido que estava a falar a sério em relação ao meu sobrinho Zé Pedro, teriam dado um jeito de me ajudarem a leva-lo junto de Carlota. Eu só disse que isso já não importava mais e já era passado. Uma delas chorou e disse-me:
- Vitoria, a força do amor de uma mãe desesperada move montanhas. O que todos presenciamos aqui hoje foi um milagre antecipadamente previsto por você. Nenhuma de nós acreditou o suficiente para a ajudar e isso pesa-me na consciência, principalmente porque bastaria uma palavra minha e teríamos tentado, pelo menos. – ela falava banhada em lágrimas, assoava-se e não parava de falar – Quero pedir desculpa, mas sou sincera, não acreditei. Pensei que não passava de mais um delírio de uma mãe desesperada. Aprendi muito com a sua história e já jurei a mim mesma que, do que depender de mim, nunca mais duvidarei do coração de uma mãe! Nunca mais me sentirei tão mal como neste momento, não por culpa minha!

As outras duas colegas dela também se manifestaram solidárias com ela e comigo. Lamentaram o sucedido e saíram visivelmente emocionadas.
Passada a tempestade, vem a bonança! Era domingo e estava um dia lindo de sol! Entrei no hospital carregada de vasos com manjericos e bandeirinhas. Cada vaso tinha uma bandeirinha com uma quadra alusiva ao S. António. Pedi à filha da senhora que os estava a vender na entrada do hospital que me ajudasse a carregá-los e distribuímo-los por todos os quartos daquele piso da pediatria. Foi uma festa! Toda a gente ficou feliz com o meu gesto. Mais uma vez, o meu subconsciente me mandou fazer isto como uma maneira de passar um pouco da minha felicidade para todos e contagiá-los o mais que podia, ainda que de uma maneira bem singela.

Depois de entregues todos os manjericos, fui juntar-me a Carlota e ao pai que estavam na maior conversa com um livro de histórias que, entre outras coisas, tínhamos levado para ela. No fundo queríamos saber como estavam a funcionar as suas capacidades intelectuais.
Carlota ia fazer 7 anos de idade. Frequentava o 2º ano do 1º ciclo do ensino básico. Já lia e escrevia muito bem. Fomos carregados de livros com histórias para ler e outros para pintar. Ela ficou encantada e parecia uma tagarela a falar. Notava-se que estava ávida de falar e até gesticular. Felizmente não nos fez perguntas difíceis. Não perguntou nada sobre o motivo pelo qual estava ali. A preocupação dela era falar e falar sem parar. Embora falasse muito, não dizia nada disléxico ou sem sentido. Lia muito bem e a sua tagarelice era relativa aos livros e ao que estava a fazer.
Assim passámos os dias até terça feira seguinte. A médica dela deu-lhe alta e veio falar comigo. Entre outras coisas, disse-me o seguinte:
- Vitoria, agora que todo o perigo já passou, vou-lhe dar conta do que poderia ter acontecido e alertá-la até para, quem sabe, poder ajudar alguém em situações semelhantes à sua. Quando você deu a bofetada na sua filha, eu sei que a sua intenção era precisamente a de a reanimar e lhe devolver a respiração certo?
- Claro!- respondi curiosa e atenta.
- Pois, eu sei disso, mas o que você não sabe é que conforme ela reagiu, podia ter morrido também. Num acidente destes, nunca se deve tocar na pessoa acidentada por motivo algum. Deve esperar-se os primeiros socorros serem dados por quem sabe o que fazer e está devidamente treinado para isso. Um pequeno deslize e acaba-se com a vida da pessoa em segundos. No seu caso deu certo e teve muita sorte e também só lhe estou a dizer isto, porque felizmente tudo correu bem, caso contrário jamais teríamos tido esta conversa. – ela olhou-me com um sorriso sincero e ia continuar, mas eu interrompi-a perguntando:
- Srª Drª acha que se eu não tivesse tido a reacção que tive naquela hora, a minha filha estaria viva?

Ela olhou-me bem fixamente nos olhos e, nesse momento eu li no seu olhar que ela estava a pensar como haveria de me responder, sem que se contradissesse no que já me havia dito, claro! Como eu entendia bem o seu olhar! Finalmente disse:
- Vitoria, jamais o poderemos saber. Mas quero acreditar que a sua reacção neste caso específico foi a acertada. Contudo, a minha advertência é a correta entende? No seu caso e como foi tudo muito rápido, apenas resultou. Foi uma questão de sorte minha linda! - E continuou:
- Bom, agora Carlota só tem a parte de ortopedia e essa, cura em casa e vai levar uns tempos, mas não é grave. O pior problema dela era realmente o traumatismo craniano que, felizmente a maior parte do sangue pisado está a ser reabsorvida pelo próprio organismo e só daqui a 3 meses é que faremos novos exames e veremos como se está a portar o hematoma. Até lá, faço votos para que tudo vos corra bem. Vitoria, mais uma coisa, estou espantada porque nunca vi tanta gente interessada num caso como o da sua Carlota aqui neste hospital nem em nenhum outro por onde eu tenha passado. Teve muita gente a rezar por todos vocês. Foi uma mobilização enorme de amigos e de amigos dos amigos. Só a quantidade de chamadas que eu recebi diarimante nos três primeiros dias, foi qualquer coisa fora do comum. Nunca me aconteceu nada igual. Vocês devem ser uma família muito querida lá na Régua hem? Bem vou deixa-las. Boa sorte e até Setembro.
Muito resumidamente, senti-me na obrigação de lhe contar a minha reação quando cheguei ao hospital. Contei da agenda telefónica e ela ficou a entender o porquê de tanto frenesim no hospital com a menina do acidente na barragem da Régua. 
Só quero acrescentar que durante os restantes três dias em que fiquei com Carlota no hospital, depois de ela ter acordado do coma, me dediquei ao máximo a confortar as outras mães que lá estavam. Algumas fizeram o mesmo comigo antes da minha filha acordar e diziam-me :
- Tenha fé que ela vai acordar em breve. Os comas nestas idades não são muito perigosos, qualquer consequência que se verifique, quase sempre tem solução nesta idade. Não se preocupe Vitoria, muita força e pensamentos positivos.
Ouvia estas palavras, muitas vezes, de outras mães que tinham os seus filhos num estado muito pior que a minha.

Marcaram-me muito dois casos: um miúdo de 5 anos que caiu para trás do segundo degrau de uma escada e tinha um traumatismo craniano com danos irreversíveis; o outro caso era de uma menina com a mesma idade que tinha sofrido um acidente na moto com o pai. O pai estava parado e ela caiu da moto abaixo ao chão e estava completamente paralisada.

Estes dois casos impressionaram-me muito porque não foram acidentes tão graves como o da Carlota, um degrau e uma queda de uma moto, como podiam aquelas crianças estar naquele estado? As mães de ambas foram precisamente das que me deram mais força e me apoiaram mais ali dentro, obrigando-me a ir ao refeitório comer com elas.

Eu visitei todas as categorias de internados ali dentro, com excepção das doenças infecto-contagiosas que era proibida a entrada.

Aquelas crianças com leucemia! Jamais esqueço as suas cabecinhas sem cabelo e os seus sorrisos lindos na sala dos brinquedos, onde me juntava a eles uns minutos uma vez por dia. Felizmente nunca vi nenhuma criança a morrer ou em estado crítico.
Quando abandonei o hospital, levei comigo muitas coisas em que pensar e uma aprendizagem soberba! Mais tarde eu teria muito tempo para digerir tudo aquilo. Naquele momento, o mais importante era regressar a casa e tentar retomar a normalidade.
Levei Carlota para casa e essa terça feira dia 16 de Junho de 1992 foi um verdadeiro dia de festa. A primeira paragem foi em casa dos meus pais, onde nos aguardavam dezenas de pessoas vizinhas deles e que conheciam bem a Carlota.

Depois seguimos para nossa casa e íamos parando de vez em quando, porque encontrava pessoas amigas que nos obrigavam a parar para darem as boas vindas.

Chegadas em casa, a porta não se fechava. Era um constante entra e sai de amigos. Todos queriam saudar-nos e ver Carlota enfiada no seu gesso tão invulgar.
A porta de casa abria-se às nove e fechava-se à meia noite. Isto era diário. Eu vivia de café e mais café. Cada pessoa que chegava e tomava café, eu acompanhava. Estamos a falar de café expresso. A minha rotina diária tinha-se transformado totalmente. Levantava-me cedo, lavava Carlota, dava-lhe o pequeno almoço e começava a receber visitas. Quando à noite caía na cama, adormecia de imediato e dormia ininterruptamente até de manhã e recomeçar tudo de novo.
Tive um encontro na rua nesses primeiros dias que mexeu muito comigo. Uma amiga minha dos tempos de liceu que, tal como eu, tinha também duas filhas, acabava de perder uma delas enquanto eu estive ausente com Carlota no hospital. A miúda teve um vírus que nunca chegaram a saber qual era, mas que foi fatal. Em dois ou três dias, ela faleceu. A mãe só me disse isto:
- Vitoria tiveste tanta sorte em teres a tua filha viva! Eu perdi a minha em três dias. Porque é que Deus fez isso comigo? O que foi que eu fiz de errado para ele me castigar desta maneira?
Fui tomada de surpresa pelas suas palavras, principalmente pelo que estava implícito nelas; eu merecia ter a minha filha viva e ela não; eu tinha sido poupada de um sofrimento atroz e ela não; Deus tinha levado a sua filha para junto dele, ou tinha-a castigado da pior maneira? Por segundos, tentei pôr-me no seu lugar, mas não consegui. Infelizmente, eu estava perdida sem saber o que lhe dizer. Não me saía nada. Eu estava completamente em choque. Só me lembro de ter dito isto:
- Eu não mereço nada mais do que tu. Deus sabe o que faz e temos que confiar nele. Eu sei que para mim fica muito fácil falar. Não me imagino no teu lugar e sei que deves sentir uma dor infinita. Eu não tenho qualquer culpa que as coisas tenham acontecido desta forma minha querida. Não tenho explicação e acho uma injustiça! O que precisares de mim dispõe e conta comigo. Não sei o que te dizer mais a não ser que confies em Deus. Ele vai ajudar-te a aliviar essa dor, com o tempo quem sabe não vais entender o porquê de muitas das coisas para as quais neste momento não tens respostas. Não sei como é estar no teu lugar, mas confio em Deus e sei que só isso me ajudaria nesse sofrimento. – despedimo-nos com um abraço bem apertado e prolongado com lágrimas de dor e pesar.
Quanto eu tinha que agradecer meu Deus! Depois mais tarde, pensei naquela cena e concluí que eu era abençoada e não entendia porque Deus lhe tinha levado a filha para junto dele. Apesar da minha fé católica me dizer que quem morre, especialmente crianças, vão diretamente para junto de Deus e ficam bem na Sua companhia, eu não me imaginava no seu lugar. Perder uma das minhas filhas seria morrer também. Não conseguia passar disso e passei a rezar ainda mais.
Como o calor já começava a apertar e, os meses de Julho e Agosto eram quase insuportáveis, decidimos ir para a casa do Porto. Lá era muito fresco, nunca sendo necessário usar ar condicionado e para dormir, muitas vezes só o lençol não bastava.

Com Carlota toda engessada, era muito melhor estar num ambiente fresco. Para além disso, havia já o cansaço de tanta visita. Era bom, mas muito cansativo para todos nós. No Porto continuávamos a ter visitas, mas felizmente quase só ao fim de semana.
Comecei a ter uma nova preocupação. Carlota antes do acidente não comia nada com vontade. Era sempre obrigada a comer. Com a invenção de histórias ou promessas de brinquedos e jogos, conseguíamos que ela fosse comendo alguma coisa. Sempre foi um horror a hora da refeição por causa dela. Nesta altura e toda engessada até ao peito, ela comia tudo o que eu lhe dava e ainda pedia mais. Ela fazia questão de dizer que não me queria ver triste e sabia que se comesse tudo, eu ficava feliz. Isso era verdade, mas a minha preocupação era ver que ela tinha o gesso mais apertado e dava-me a sensação de que se engordasse um pouco mais iria ficar de tal forma “espremida” que teria que a levar a mudar o gesso todo. Isso não passou de uma suposição e correu tudo bem.
No final de Julho Carlota tirou o gesso. Eu fui alertada para dois factos: - toda a parte coberta pelo gesso estaria coberta de pelos e a sua perna engessada estaria um pouco mais curta. Essa perna não teria crescido devido ao facto de estar ali apertada e meia dobrada dentro daquela massa dura tanto tempo. Ambas essas consequências eram apenas temporárias. Os pelos cairiam rápido e a perna cresceria mal ela começasse a andar de novo.

Não chegou a usar as muletas vermelhas que lhe compramos no dia em que tirou o gesso. Na semana seguinte e de regresso à Régua, levei-a à piscina e ela começou a nadar e rapidamente recuperou o andar sem claudicar quase nada. Foi uma recuperação fantástica. Na sua consulta de neurocirugia em Setembro, a médica deu-nos a excelente noticia de que todo o hematoma tinha desaparecido e que dificilmente ela sofreria de epilepsia mais tarde por causa do traumatismo.
Visto tudo isto que mais podíamos todos desejar? Todo aquele susto não tinha passado disso mesmo: um susto! Tínhamos sido uma família muito abençoada por Deus! Eu estava imensa e eternamente grata à minha Santa. A primeira coisa que fiz depois da consulta de Setembro, foi irmos todos a Fátima. Todos agradecemos e rezamos a chorar. Foi uma das emoções mais felizes de toda a minha vida. Sempre que posso, vou anualmente a Fátima e esse milagre por que todos passámos é o primeiro que agradeço quando me ajoelho e começo a rezar. (M.J.L.)

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